É que sou das metáforas, entende? Porque Deus sempre terá mãos de almofadas e piscina é só um lugar para se encontrar o amor - desde que se pule de cabeça, ainda que se possa partir a alma. Então, andando pela praia, entendi que somos todos uma grande e tumultuada comunidade de marias-farinha. Você sabe o que é uma maria-farinha? Vou contar. É aquele bicho casquento que arrasta patas na beira do mar, entrando e saindo de buracos o tempo inteiro, sem saber ao certo o que é. Guaiamum, caranguejo, siri, aratu? Quase com vergonha da vida, quase gente, igual e diferente, rotulado pelos olhos de quem vê.
Já me disseram freira, puta, mansa, fútil, oca, serena, pálida, macia, astuta, vil, ferina, real, fingida, linda, inventada. E o que eu sou afinal? Quase tudo e quase nada, pintada com as cores de quem se expõe sem tirar o véu. Porque mantos não são máscaras e o que está por baixo e por cima se confundem, mas não se misturam; água e óleo dissolvidos em gás nobre, numa tentativa quase des-esperada de não ter medo do mundo. De gente, de gente é impossivel não tê-lo. Lendo um conto de Clarice, descobri que gentes podem ser tão cruelmente ruins que fazem quati achar que é cachorro apenas para conseguirem uma entrega que, sem mentiras, não seria possível. Você já imaginou isso? O homem fingia que o pobre quati era um cachorro preso na coleira, proibindo-lhe uma identidade que o bicho nunca sonhou ter. Por amor e por medo. Ou medo de não ter amor. Ou falta de amor dissimulado num reconhecimento silencioso de covardia. "O homem nunca lhe dirá quem ele é para não perdê-lo para sempre". E o quati foi obrigado a assumir uma natureza impossível a sua condição.Um tapa na cara e lá estava: tudo uma questão de grande e palpável fraqueza. Porque é mais fácil acreditar que a loucura é uma fuga inconsciente da realidade do que abrir as portas e pernas e revelar o que é. Repito: é preciso muita coragem para entregar nossa verdades às pessoas; elas têm medo. Agora olhe para mim. O que vê? Olhando assim, friamente, calmamente, plenamente, diria que sou má? Diria que tenho mais pena de bicho do que de gente? Que já matei alguém mesmo que apenas dentro de mim? Diria que sou extremamente santa que as mãos gelam quando penso línguas, cores, bocas e sexos? Diria que sou vazia? Que analiso fezes e enterro borboletas? Diria que canto mantras secretos? Que cuspo vozes para dentro, numa tentativa ousada de falar o que não tem nome? Que sou idiota? Que corro pelas vias da cidade esperando ser surrada por um bando de bestas-feras? Diria que sou tímida? Diria que sou vulgar? Diria que durmo azul e amanheço parda? Que mastigo lentamente as semtentes de jerimum? Que arrasto correntes em castelos imaginários? Que me basto? Que te ardo? O que você diria de mim? Tentei desviar das marias-farinha na beira da praia sem saber qual de nós parecia mais perdida. Assustada até. Porque não se reconhecer é uma forma de se perder do resto do mundo, ainda que nem se saiba para onde se vai. É quando gostaria de pegar na mão, andar lento e cantar qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade, exatamente como as musas de Vinícius. Porque apesar da masculinidade correndo nas veias, sou dama, anja, monja, atriz, mulher mulher mulher, E preciso de ansiedades curada, estrelas nos sapatos, asas nas costas, construções erguidas, palavras faladas e todo amor que houver nessa vida. Com nome, cara, mão, segredo, suspiro, prazer, mistério e desejo desejo desejo.
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