sexta-feira

A Paixão Segundo G.H.


Dá-me de novo a tua mão, não sei ainda com me consolar da verdade.
Espera por mim, sei que estou indo para alguma coisa que dói, porque estou perdendo outras.
Por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita.
Eu nunca havia deixado minha alma livre , e me havia organizado em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro.
Mas descubro que não é necessário sequer ter esperança.
É muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim mesma. Não se deve dizer que a esperança não é necessária, pois isto poderia vir a se transformar, já que sou fraca, em arma destruidora. E para ti mesmo em arma utilitária de destruição.
Sei que se eu abandonar o que foi uma vida toda organizada pela esperança. sei que abandonar tudo isso - em prol dessa coisa mais ampla que é estar vivo - abandonar tudo isso dói como separar-se de um filho ainda não nascido. A esperança é um filho ainda não nascido, só prometido, e isso machuca.
Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É como agonia da morte: alguma coisa quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar.

Clarice Lispector

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